quarta-feira, 28 de maio de 2014

Vertigens


Já ninguém se espanta quando aparecem nos media alguns militares de Abril a defender a mudança de Governo; nem sequer quando sugerem, ou defendem, o recurso a métodos anti-democráticos. A emoção pelo aniversário do “25 de Abril” (25A) e a deselegância duma associação privada em condicionar a aceitação de um convite do parlamento a poder discursar no plenário numa sessão solene criaram mais um pretexto para tal espetáculo – com uma novidade: o apelo público e explícito de Mário Soares à sublevação militar, isto é o uso da força das armas por oposição ao funcionamento normal das regras constitucionais, para afastar o atual Governo.

As ameaças e os apelos, explícitos ou sibilinos, de tal sublevação têm sido noticiados pelos media, mas pouco mais do que os jornalistas e comentadores que são contra o Governo as valorizam; e menos ainda lhes dão eco. Afinal, por muito fraca que seja a nossa democracia, ninguém que afaste as suas emoções, ou que observe as experiências ocidentais, encontra uma boa justificação para que os militares mudem o Governo, ou tutelem a democracia. Até porque, pelo menos numa fase inicial, os militares tomariam o poder e poucos (exceto entre os militares…) creem que governariam melhor. Falar em sublevação assusta os incautos e revela imaturidade democrática, tantas vezes nos mesmos que se dizem defensores da democracia e da Constituição (saberão o que defendem?).

O PREC revelou que muitos, quiçá a maioria, dos militares de Abril, só visavam a mudança do Governo por outro a seu gosto; o incómodo, e até o inconformismo, com os resultados das eleições de 1975 e seguintes estão documentados, embora quase esquecidos. Quando dizem que “não foi para isto que fizemos o 25A”, além de se arrogarem serem donos da mudança (embora já tenham admitido que não prepararam “o dia seguinte”), revelam que apenas visavam colocar no poder dirigentes a seu gosto, e não os que o povo escolhesse em eleições livres. As críticas que fazem aos “políticos” são estranhas vindas de cidadãos que usaram as armas na política e que foram e são políticos (hoje, talvez só pela intervenção pública que fazem); as críticas que fazem à juventude dos atuais políticos (com idades na ordem dos 50) é estranha de quem conduziu o país há 40 anos (com 30-40), e cometeu erros tão onerosos e duradouros como as nacionalizações. Os militares, como cidadãos, têm todo o direito de não gostar dum Governo ou das suas políticas; mas se são democratas devem respeitar a diferença e atuar, como os demais cidadãos, dentro das normas constitucionais e de convivência em democracia. Ela não se reduz a votos; mas ninguém tem legitimidade para representar o povo, e ainda menos impor-lhe as suas visões, sem se submeter à escolha popular – insubstituível por sondagens e ainda menos por projeções (por mais que alguém as qualifique de “científicas”).
Em cima disto, Soares, um político que deu passos decisivos para afastar os militares da política em nome da democracia (em 1975 e em 1982 e seguintes) apela agora aos militares para mudarem um governo legítimo de que ele não gosta. É grave que um ex-presidente da República (PR) e ex-deputado, da III República (nacional e europeu), faça tais apelos, que contradizem em absoluto a letra e o espírito da Constituição. É inconcebível um democrata dum país ocidental a fazê-los.

De facto, Soares deu muitos sinais de não ser um democrata exemplar; mas os media, ao invés do que fazem com muitos outros cidadãos, fazem questão de não recordar as falhas de Soares. Recorde-se a sua proximidade de Mobutu e Savimbi. Como maltratou um guarda da GNR em serviço quando era PR. Como sempre desconsiderou a valia de adversários políticos, logo ele que sempre foi um intuitivo que não estudava dossiers. E que dizer dos factos descritos e provados por Rui Mateus no livro “Contos Proibidos” (caso único de edição esgotada em dias sem mais edições; quem a comprou?), que configuram uma grave falta de transparência, esquecidos pelos que acham que a corrupção política é um fenómeno recente e devida a políticos jovens? E por que razão os media colaboram no “silêncio” de Rui Mateus? Será que os processos revelados por Rui Mateus não acabaram e continuam vivos no financiamento das suas fundações? E por que razão os media não recordam tudo o que Soares afirmou quando, como primeiro-ministro, procurou, por duas vezes, fazer sair Portugal de crises de excesso de endividamento externo? A manifestação da Alameda foi uma posição corajosa contra outra ditadura (desta feita, comunista) que se aproximava; mas está claro que Soares estava mais a afirmar-se do que a lutar pela democracia. Por tudo isto e muito mais, os recentes apelos de Soares aos militares apenas refletirão perda da vergonha que terá tido de deixar provas de posições que ele intui (intuitivo, sem dúvida, é!) serem exemplos de intolerância.
 
A seletividade dos media abrange todas as (poucas) vozes que contestam publicamente Soares: elas têm fraco ou nenhum eco. Se há exemplo de “pensamento único”, é a opção mediática de elevar Soares ao pedestal de “pai da democracia”, sugerindo que ele só é contestado por franjas descompensadas ou sectárias. (A “canonização” mediática de António Costa pelos media também está em curso.)
 
Soares e alguns militares de Abril parecem convencidos de que os portugueses lhes têm uma dívida eterna, que os coloca acima dos demais cidadãos, como tutores do país. Falta-lhes humildade e tolerância para merecerem os títulos de democratas e os pedestais onde foram colocados. Está à vista que colocar vivos num pedestal tem um problema: podem sofrer de vertigens e cair; só um esforço titânico dos media e das suas redes de apoiantes pode evitar a queda.
 
Não há democracia sem democratas. Por isso, é bizarro que a sociedade portuguesa, com culpas dos media, considere como “heróis da democracia” cidadãos que não são democratas exemplares.

PS - Já estava referenciado, por outras razões. Mas depois deste post...

4 comentários:

  1. no tempo desse mesmo Soares era comum ver te vender autocolantes do PS e da JS na banca do liceu Camões. quem mudou.. tu.. O Soares.. ou ambos?

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    1. Era simpatizante do PS, nos tempos do Liceu Camões (há mais de 35 anos), mas nunca me viste vender fosse o que fosse. Estás a confundir com outra pessoa.
      Seja como for, só por fanatismo alguém pode ficar indiferente aos factos relatados e demonstrados por Rui Mateus no livro "Os Contos Proibidos".

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  2. Com que então, "simpatizante do PS"!!!! Mas não vendia os autocolantes!!!!
    Já percebi a causa do radicalismo feroz e a viragem à direita!
    Tudo se explica!
    E o tempo passado desde essa altura até hoje também "lava" muita coisa! Para si, porque para Soares não lava nada! Curiosa "moral" democrática!
    Luís Alves de Fraga

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