Quando se discute a forma não se
discute – não se quer discutir – a substância. Em vez de se discutir a questão
de fundo – que Estado os portugueses querem e podem colectivamente sustentar
pelos seus impostos – anda-se a falar de coisas laterais a propósito do
Relatório do FMI. Senão vejamos.
Primeiro, numa sociedade livre, é
absurdo dizer que só há um mês para discutir a Reforma do Estado (também não
simpatizo com “refundação do Estado” e prefiro “repensar o Estado”, mas isso é
mais uma questão lateral, a que se dedica quem quer evitar a substância).
Medina Carreira anda a falar nisso desde 2005; vários comentadores disseram-no
em livros ou nas TVs desde 2009, e sublinharam-no após a entrada em vigor do
Memo da Troika. Quando tantos se agarram ao que os comentadores dizem, por que
razão os seus comentários e apelos com anos à Reforma do Estado têm sido
ignorados?
Segundo, se o problema é haver
pouco tempo, então para quê perdê-lo a discutir coisas laterais, como se é
técnico ou político, se foi encomendado ou não, se tem erros, etc. etc.?
Terceiro, como se pode dizer que este
relatório visa o fim do Estado Social, quando está em causa uma redução de 5%
das despesas do Estado?
Quarto, por que razão o tom da
cobertura mediática relativa a cortes na despesa pública era favorável aos
mesmos, quando se associavam os cortes a “gorduras” ou a divisões no Governo, e
agora tende a ser neutra ou adversa aos cortes, apresentando-os como perdas
civilizacionais? Será porque os media intuem que as suas audiências dependem do
tom com que abordam os cortes das despesas públicas? E não estarão os media a
servir também os seus interesses através da manipulação do tom?
Acresce ainda a posição pública de
vários intelectuais, que tanto criticam a falta de debates sérios entre os
portugueses, e que só se ocuparam do relatório (na forma e nos detalhes),
ignorando a questão de fundo. Porque dos intelectuais espera-se que apresentem e
defendam teses e raciocínios que até podem ser impopulares, como manter os
impostos e as despesas altos – mas que se comprometessem com alguma coisa e não
se cingissem a “dizer mal”. A intelectualidade portuguesa teve várias oportunidades
de liderar o debate, mas acabou por revelar um (não-surpreendente) espírito de
Pilatos. À semelhança dos artistas, muitos revelaram a busca do aplauso e da
popularidade (ou dos “like” no Facebook).
Estes pontos revelam as
incoerências e a manipulação da análise e do debate no espaço público sobre as
despesas públicas. Os cortes acabarão por acontecer, muita gente se vai queixar
e, passados uns anos, está tudo habituado – e o que ficar passa a ser defendido
com “unhas e dentes” como conquista civilizacional. Já aconteceu, até porque a
memória das pessoas é curta – já poucos se lembram do que Soares fez e disse, e
o que aconteceu, em 1983-1985…
UM BOM RELATÓRIO
O Relatório do FMI é um bom
relatório: enquadra o problema, descreve alternativas em pormenor e
quantifica-as; oferece mais alternativas do que o objectivo de cortes de €4bn,
o que permite escolher. Tem a credibilidade de uma organização internacional
com larga experiência, e válida, na matéria. Isso é o que se espera de um
relatório desta natureza.
Tendo de fazer um relatório deste
tipo, poucos haveria em Portugal capazes de ceder à tentação de nele reflectir
os seus interesses especiais ou de “cavalgar a onda” do descontentamento – não
é que haja falta de portugueses competentes, mas poucos têm independência e paciência
para defender posições impopulares no espaço público. É compreensível a falta
de paciência para suportar os comentários de tantos que falam de temas
económicos complexos, e que devem a sua formação na matéria a títulos e chavões
dos media (enquanto ridicularizam outros pelas equivalências…); “a geração mais
qualificada de sempre” aprendeu com a sociedade que mais fala de PIB,
crescimento, multiplicadores ou previsões, sendo duvidoso que saiba sequer as
respectivas definições.
Se as alternativas quantificadas
são implementadas, ou sequer aceites, nada tem a ver com a qualidade do
relatório: podem recusar-se todas as opções, por razões políticas, que o
relatório não deixa de ser bom por isso – pode é ter sido um desperdício. E
quem decide são os órgãos de soberania, que podem fundamentar melhor as suas
decisões, quando têm assessoria técnica que não tem interesses instalados. O
tempo que alguns gastam a tentar retirar credibilidade ao Relatório do FMI
revela que ele é relevante e útil, e o que fariam se o autor fosse uma entidade
interna. Tentam “matar o mensageiro”, mas a realidade tem muita força e não
desaparece por se afastar um relatório. O Relatório do FMI permite ultrapassar
o âmbito das discussões inconsequentes, em que se debatem ideias vagas e onde
tudo é possível, para o domínio das opções realistas, que têm consequências positivas
e negativas, e que se podem estimar. Claro que fazer e revelar opções incomoda
muita gente.
Sobre a Reforma do Estado, como
todos, desejo impostos mais baixos. E desejo que haja menos grupos de pressão a
interferir com as minhas decisões, ou a forçar-me a sustentar as preferências
deles.
Por consequência, defendo que as
despesas públicas têm de se reduzir, provavelmente mais de 5%, pois não é
razoável esperar que o PIB cresça anualmente 3% ou mais nos próximos 2-3 anos.
E a minha prioridade para as despesas públicas é afectar recursos aos mais
desfavorecidos e não à classe média.
Como valorizo muito o meu
dinheiro, aceito bem pagar mais taxas moderadoras por usar serviços de saúde, ou
aforrar para ter um rendimento adicional na reforma. Defendo a existência de
limites para as pensões pagas pelo Estado. Parece-me muito bem que exista um
sistema misto (público e privado), como em países como a Suíça e outros; e não
me choca nada que haja entidades privadas, reguladas, a operar e a ganhar
dinheiro com a gestão de um tal sistema.
Este é o tipo de debate que todos
sabemos que é inevitável, mas que uns milhares tentam controlar no espaço
público com “megafones”, para não verem os seus interesses afectados; a maioria
silenciosa tem a noção de que há uma certa inevitabilidade neste ruído no
espaço público e dos cortes a fazer. E assim, eles vão acontecer.
Concordo em 100%. Nao me preocupa os likes , dislikes, e opinioes politicamente correctas, ou modas. So' se pode viver -sustentavelmente- com aquilo que se tem...
ResponderEliminarDesta vez concordo com o cmg Silva Paulo. Aponta caminhos que se podem seguir com inspiração no relatório que considero boa base de trabalho para se ir melhorando.
ResponderEliminarAP
BZ
ResponderEliminarPaulo, li o documento com muita atenção e não posso concordar que seja um bom relatório, que enquadre o problema, que descreva alternativas em pormenor e que as quantifique. Penso até que o desequilíbrio das abordagens sectoriais, a falta de rigor na invocação dos modelos que podem servir de referência e a ligeireza de algumas conclusões prejudicaram o debate que, concordo em absoluto, é necessário, inevitável e muito urgente.
ResponderEliminarPartilho as tuas preocupações, desejos e muitas das ideias, mas tenho sérias dúvidas que elas tenham presidido à elaboração do documento.