quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Agradecimento a Luís Macieira Fragoso (final)


Uma vez concluído o processo, importa destacar os factos principais, analisá-los e tirar as conclusões devidas; é disso que se ocupa este texto.

O processo concluiu-se com a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de manter a decisão do Tribunal de Instrução Criminal de não pronunciar Fragoso e Gouveia e Melo por qualquer crime. Seguiu-se a decisões contraditórias do Ministério Público e do Tribunal da Relação de Lisboa; mas a que conta é a última.
E esta foi extraordinária, por duas razões: os arguidos afirmaram, de viva voz, ou por meio do advogado que os defendeu, que não tinham classificado nenhum papel de “segredo de Estado”, nem disseram quem o fez; porém, na sua participação criminal, Fragoso afirmou que eu violei o segredo de Estado (e por isso o Ministério Público iniciou um inquérito judicial, com o nº2307/15.3TDLSB); sublinho: Fragoso não pediu uma investigação, nem sugeriu tal necessidade – afirmou, como mostrei no meu post anterior (http://proa-ao-mar.blogspot.com/2018/01/agradecimento-luis-macieira-fragoso-6.html). Nunca recuou. Se não classificou, nem disse quem classificou, como sabia que estava classificado? Ou sabia, por o ter feito; ou fez uma afirmação falsa e sabia-o – crime (diferente) em ambos os casos.
Os arguidos não deram explicações neste domínio, e o seu advogado, no debate instrutório, sugeriu que o problema foi a assessoria jurídica do CEMA: “de forma naturalmente errada, errada para ser simpático”, “isto é uma asneira jurídica clamorosa” e “uma infelicidade da participação original”.

Surge logo esta dúvida fundamental: como é que um alto funcionário do Estado, com 60 anos e uma carreira de 40 (parece que esteve dois anos a vender carros, apesar de estar no ativo…), acusa uma pessoa de violar o segredo de Estado, sem ter provas nem sequer indícios?

Como alguém disse… “mas onde é que os vão buscar? Como é que os escolhem?”

Mesmo que, com uma dose de tolerância a roçar a credulidade, se admitisse que Fragoso não tinha consciência do que estava a assinar, a sua assessoria jurídica sabia exatamente que era falsa a afirmação.

Um funcionário sério e competente não assina um documento que acusa alguém sem ter a certeza do que está a afirmar – nem um funcionário que submete ao chefe um papel para assinar (embora a falha do subordinado não desculpe a falha do chefe). Um funcionário sério e competente assume a responsabilidade pelo que assinou, mesmo que tenha errado. É inerente ao papel de chefe, e ainda mais de comandante militar, e de topo.
Fragoso não só não o fez, como se abrigou no estatuto de arguido para não prestar declarações, e usou o seu advogado, para apontar as culpas a um/a (ou mais?) subordinado/a seu/sua. Como voltar a confiar em tal subordinado/a? E em Fragoso?


A segunda razão é que o coletivo do Tribunal da Relação de Lisboa que encerrou o processo não optou só por dar o benefício da dúvida a Fragoso; passou a ideia de que só pronunciaria Fragoso se este declarasse em tribunal que sabia estar a mentir e que queria fazer mal; com este nível de exigência de prova, obviamente poucos (talvez só loucos) chegariam alguma vez a julgamento e ainda menos seriam condenados – porque a prova documental era objetiva e suficiente. Mas é pior, porque tanto este coletivo, como a juíza de Instrução, como alguns magistrados do Ministério Público insistiram em que eu poderia ter tido acesso ao papel que Gouveia e Melo escreveu, e que bastava essa possibilidade para tornar verosímil a denúncia de Fragoso (tudo isto, sublinhe-se, por, apenas, citar a frase do “nevoeiro legislativo”). Curiosamente, uma ideia repetida por vários oficiais da Armada próximos dos arguidos, e que certamente lhes dava muito jeito.

É como se, dada uma coincidência, tivesse de ser eu a provar que não tive acesso ao dito papel, em vez de caber a quem acusa provar o que afirma.
Mas eu até provei, e fi-lo logo na participação criminal, que foi seletivamente ignorada.
E nenhum dos arguidos apresentou qualquer prova, nem sequer indício, de que eu podia ter tido acesso ao dito papel. Mesmo assim, demonstrei reiteradamente que não tive, em declarações e nas respostas e contestações escritas.

Pasme-se… não interessaram os factos; só interessou a hipótese sem provas nem indícios, ainda que provada falsa. Está na natureza da defesa fazer o que puder para safar os arguidos; mas que os magistrados insistam perante hipóteses que no processo se demonstrou serem falsas, já é muito preocupante. Mas foi assim, e as peças processuais revelam-no com clareza. Não foi um momento de que a administração da justiça em Portugal se deva orgulhar.

Continuo, ainda hoje, a só conhecer as duas páginas do papel de Gouveia e Melo que este mandou para o processo. Mas posso hoje adiantar o seguinte: mesmo que tivesse tido acesso a esse papel, nunca o usaria como referência naquele contexto, porque a criatura não tem qualquer credibilidade na matéria; apesar da sua imensa vaidade e arrogância, não passa de um ignorante bem falante, e citá-lo podia impressionar os patetas, mas não servia para provar nada. Já o apontamento em que me baseei, foi feito por alguém que estudou seriamente o problema – por isso, o papel de Gouveia e Melo, posterior, o reproduz pelo menos na 1ª e última páginas. O incómodo dos funcionários com o meu conhecimento do apontamento que citei deveu-se à revelação de que afinal havia dúvidas na Marinha, e que, quando diziam que estavam a cumprir exemplarmente a lei, podiam ser acusados de má-fé; tinham dúvidas, mas não pediam aos órgãos competentes para as esclarecer, e atuavam como entendiam (parece que não é só na PJM...). Coloquei-os numa posição vulnerável, até internamente, pelo menos perante aqueles que estudaram minimamente a matéria. Percebe-se que, numa lógica perversa, teriam motivos para me calar.

O facto de os tribunais não terem declarado que Fragoso e Gouveia e Melo cometeram crimes, não apaga os factos nem a sua conduta deixa de ser censurável, pelo menos noutros planos.
Deixar as suas condutas passar sem reprovação passa um péssimo exemplo, que pode levar demasiados militares (os que obedecem cegamente; e os que seguem as pisadas dos que chegam longe na carreira) a concluir que aquelas condutas são aceitáveis. Mais: que aquelas condutas são necessárias para se chegar longe na carreira de oficial.

E as condutas de Fragoso e Gouveia e Melo são censuráveis, porque:

- Gouveia e Melo podia ter evitado toda a situação, designadamente, podia ter evitado que o seu chefe e a Armada ficassem envolvidos nesta situação e não o fez; conhecendo-o, como conheço, há quase 40 anos, e atendendo a outros processos recentes que Fragoso perdeu nos tribunais, estou convencido que foi Gouveia e Melo a conceber este esquema e que o propôs (impôs?...) a Fragoso;

- Fragoso podia ter-se assegurado dos factos e de que não estava, pelo menos, a fazer acusações sem fundamento; mas não o fez;

- Fragoso podia ter assumido a responsabilidade, mas preferiu deixar o seu advogado sugerir que o problema foi a assessoria jurídica;

- Fragoso e Gouveia e Melo podiam ter-me pedido desculpa pelas acusações infundadas e pedido desculpa à Armada pelo enxovalho que a estão a fazer passar; mas nunca o fizeram, nem direta nem indiretamente;

- Fragoso e Gouveia e Melo são oficiais-generais, o primeiro comandou a Armada, o segundo ambicionava comandar, e é hoje o principal comandante operacional da Armada, pelo que as suas condutas são observadas pela generalidade dos militares e são, para muitos, exemplos.

Mas são exemplos que, parece-me evidente, contradizem o discurso das virtudes e do serviço público.
Não é demais repetir que Fragoso foi um alto funcionário do Estado, empossado e condecorado pelo Presidente da República (quando já sabia dos factos em causa no processo), e assinou a participação criminal de 2015 contra mim. Nunca sugeriu sequer que assim não foi, ou que foi pressionado.

É ainda de notar o silêncio de muitos – sobretudo dos que falam e falam sobre ética.
E soube de alguns que só se incomodaram por ter aplicado a Fragoso o título de “funcionário”, que acharam deselegante; não me acusaram de ser falso – é só porque “não fica bem”...
Estranhas prioridades… designar Fragoso por "funcionário", se não é falso, importa exatamente a quem e exatamente porquê?
Ou para reconhecer um mal, há que reconhecer outro, como aqueles que reprovam um violador, mas sempre vão dizendo que a vítima usava minissaia?


Dirijo-me agora ao meu amigo António Mendes Calado, atual CEMA.

Caro Mendes Calado,

Sei como prezas a amizade e os amigos. Por isso, compreendo que tenhas, enquanto Vice-CEMA, assinado um papel, a pedido de (representantes de) uns amigos, para os ajudares a safarem-se em tribunal:

“DECLARAÇÃO

A pedido dos representantes do Almirante […] Fragoso e do Vice-almirante […] Gouveia e Melo, para efeitos de junção aos autos do Proc. N.º 488/16.8T9LSB, […], o Estado-Maior da Armada analisou o Apontamento datado de 10/10/2012, composto por seis folhas não numeradas, sob o assunto descrito como “Reflexão sobre as relações de Comando e Controlo entre a Autoridade Marítima Nacional (AMN) e as unidades navais com missões e tarefas no âmbito da actuação do Sistema de Autoridade Marítima”, cuja cópia extraída da participação criminal constante dos autos se junta em anexo, para a sua correcta identificação.”

Desde logo, fiquei sem perceber porque disseste que o dito apontamento tem 6 folhas – logo, 12 páginas. O documento que consta da participação criminal tem 12 páginas e na minha participação criminal só refiro 12 páginas e não folhas, pois os anexos são parte integrante do texto. Percebes a dúvida, claro.

Além disso, todo o texto segue a argumentação da Armada na matéria, que tem décadas.

Podia ser incómodo (para eles; não para a descoberta da verdade) que fosse chamado a depor (vinculado, como estaria, a dizer a verdade, correndo com isso o risco de acabar com a carreira…) o autor do dito apontamento.

Talvez nem soubesses que a minha participação criminal já tinha previsto aquilo que está escrito no papel que assinaste (claro que os apontamentos não são documentos formais e não ficam registados no serviço; e apontamentos não dão orientações – são só reflexões ou análises que não vinculam ninguém…). Assim, a tua declaração só podia servir outro fim: tentar impedir o autor do apontamento de depor.

Mas o meu problema é outro. Não vejo qual a base legal para um alto funcionário do Estado enviar declarações para um processo judicial, sem que os órgãos judiciais competentes as tenham pedido, sem serem feitas perante os órgãos judiciais competentes, sem serem requeridas pelos administrados ou arguidos (foi um pedido pessoal) e sem usar o papel timbrado do órgão do Estado.

Sei que sabes que eu sei que o Vice-CEMA é o chefe do EMA. E também sei que sabes que eu sei que só o CEMA vincula a Armada. Preciso desenvolver mais?

Depois do que fez a defesa de Fragoso, fico com a dúvida (legítima) se foste tu quem concebeu o esquema, quem elaborou o texto, ou se te foi dado a assinar; e, um dia, apertado, culparias e responsabilizarias a assessoria jurídica, alegando que foi uma asneira jurídica clamorosa, mas sem afirmar nada. É que há um precedente…

Aparentemente são graves as vulnerabilidades da assessoria jurídica no topo da Armada. Presumo que o teu antecessor e tu próprio, então Vice-CEMA, trataram de afastar as óbvias vulnerabilidades. Dizem-me que não, e há quem sugira que sabem demais para serem afastadas; só pode ser maledicência; falar amiúde em servir o interesse público e os portugueses não se compadece com manter tais vulnerabilidades.

Aproveito a oportunidade para te pedir os teus bons ofícios para libertares a informação, que existe e não tem base legal para ser afastada do espaço público, sobre orçamentos e despesas da DGAM e da PM, a base legal e os documentos administrativos relativos à decisão de aquisição e de instalação do Sistema Costa Segura, as Atas das reuniões do Centro Nacional Coordenador Marítimo, entre outra informação, que há largos meses foi requerida oficialmente ao MDN, e de que não tenho resposta. Bem sei que a informação não está em teu poder; mas tu e eu sabemos que se mostrares a certas e determinadas pessoas que devem disponibilizar a informação, de imediato elas o farão – a unidade de comando não é um dos eternos argumentos para o CEMA mandar na Autoridade Marítima? Não estão sempre a passar a mensagem de que a AMN dá ordens?

Não é o amigo que te pede um favor. É o cidadão a pedir que cumpras e mandes cumprir a lei, quanto à transparência e à colaboração da Administração Pública com os cidadãos, pois, como sabes, a informação visa tratamento académico e científico. Continuo a aguardar.

Agora como amigo, deixo-te uma sugestão. Bem sabemos que, como militares, fomos formados na ideia de que quem se nos opõe é inimigo ou traidor; e sabemos o que se faz a inimigos ou traidores. Era bom que contribuísses para tornar os oficiais da Armada mais tolerantes face a posições divergentes das suas, ou das posições formais ou culturais da Armada. A Armada só pode melhorar e servir melhor Portugal se considerar com abertura posições diferentes e até divergentes das suas.

Desejo-te as maiores felicidades e o dobro do que me desejares a mim.


Concluo este post com duas ideias:

- não vale tudo, mesmo que se diga que é para o bem da Marinha ou é pelo interesse nacional (são os órgãos de soberania quem define os interesses nacionais e o interesse público – e não os funcionários, que apenas executam políticas); não vale tudo em termos morais, e os abusos podem levar qualquer um a tribunal;

- os militares servem o Estado, não se servem do Estado.

E encerro aqui este assunto.

domingo, 21 de janeiro de 2018

Agradecimento a Luís Macieira Fragoso (6)


São muitos os motivos para agradecer aos arguidos e continuam a somar-se.
No decurso da instrução do processo 488/16.4T9LSB ocorreram alguns factos importantes que é bom deixar registados.
O primeiro foi o provimento dado ao recurso do assistente e denunciante sobre a decisão de indeferimento do requerimento de abertura da instrução. Do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa destaco a seguinte passagem (p.9):

É natural que, para se defenderem, os arguidos digam que a participação criminal se baseia em nada; todos os arguidos o fazem – mas nem todos têm razão. Este acórdão revela que um tribunal superior reconheceu que a participação criminal do denunciante tem factos que justificavam a abertura da instrução. Sim, tem “pernas para andar”, ao contrário do que alguns andaram por aí a dizer.
O segundo foi a opção do senhor Fragoso se abrigar no direito que a lei atribui aos arguidos de ficarem em silêncio. Não se contesta tal direito. Mas é estranho que alguém que afirmou tantas certezas, depois fuja a dar a cara por elas em tribunal. Cobardia? Falta de fundamentos? Tacticismo? Sentimento de casta que não se baixa a estas “vulgaridades”? Não sei. E realmente pouco me interessa, aqui e agora. Mas não revela um caráter nobre, o que não deixa de ser perturbador, num alto funcionário do Estado. Como alguém ironizou... “como é que os escolhem?”...
O terceiro foi a posição do Ministério Público, que defendeu a pronúncia do senhor Fragoso pelo crime de denúncia caluniosa. Parece que foi a primeira vez, desde sempre, que o Ministério Público defendeu a pronúncia por este crime. De novo, mais uma autoridade judicial reconheceu méritos na posição do assistente e denunciante. Sim, tem “pernas para andar”.
O quarto foi a posição do advogado da defesa no debate instrutório, em especial, a respeito da “violação do segredo de Estado”. Afirmou a propósito de tal classificação ser referida na participação criminal: “de forma naturalmente errada, errada para ser simpático”, “isto é uma asneira jurídica clamorosa” e “uma infelicidade da participação original”. Os arguidos, pela voz do seu advogado de defesa, vêm assim sugerir que a culpa foi da assessoria jurídica do CEMA, que elaborou a participação criminal.
Que diz a participação criminal que Fragoso assinou por sua iniciativa, livremente e conscientemente, empenhando nela a sua honra?



[...]

Foi devido a estas duas cláusulas que se investigou o crime de violação do segredo de Estado, empenhando recursos da Polícia Judiciária Militar e da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, para se concluir a "inexistência de crime". Qualquer pessoa percebe neste texto que o denunciante está convicto da denúncia que faz, e até a sustenta com a lei. E por ter a origem que tinha e pela convicção com que foi expressa foi levada a sério pelo Ministério Público. E bem.
O funcionário Fragoso enviou para o processo, através de ofícios assinados pelo funcionário Gouveia e Melo, várias informações. É de salientar a seguinte (um mês após a participação criminal) da qual se destaca a palavra “certamente” e o sentido que dá à posição dos arguidos:



Para os menos familiarizados com os procedimentos, cabe notar que os ofícios, se não são redigidos pelo chefe de gabinete, são, pelo menos, revistos e homologados por ele. Para que iriam Fragoso e Gouveia e Melo usar o termo “certamente” e as especificidades jurídicas se não estivessem delas convencidos? Nada mais fizeram do que reiterar a participação criminal. Como podem desculpar-se com a assessoria jurídica?
Os arguidos expressaram as suas certezas noutro ofício enviado para o processo em 08-Jun-2015:



Como pode seriamente argumentar-se que os arguidos só tinham suspeitas? E concluíram:



O funcionário Gouveia e Melo foi a testemunha do funcionário seu chefe Fragoso, tendo sido explícito nas suas declarações para o inquérito, em Novembro de 2015:









Também na instrução, o funcionário Gouveia e Melo veio sublinhar a expressão “baixa probabilidade” para sugerir que não acusou – quando linhas acima disse que “sim [o artigo se baseou no documento interno e classificado da Armada]”. O sentido global das declarações não é de dúvida, mas de certeza. No entanto, escolheu a dúvida para se safar em tribunal. Poucas coisas revelam melhor o caráter de um militar do que não assumir as responsabilidades por aquilo que fez ou disse.
Importa ainda deixar registado que os oficiais das Forças Armadas são especialistas nestas matérias; ninguém espera que oficiais-generais no topo da carreira não estejam seguros do que afirmam quando tratam de assuntos de segurança militar e de Estado. Mais: tem de se presumir que sabem exatamente o que afirmam e as implicações do que afirmam, porque é o seu ofício, e porque estas matérias constam da sua formação.

Através do seu advogado de defesa, os arguidos tentaram passar a ideia de que o problema da participação criminal de 2015 contra mim esteve em a assessoria jurídica ter tipificado erradamente o crime, ao falar em segredo de Estado. Mas o problema é outro: para haver violação de segredo de Estado teria de o estudo em causa ter sido antes classificado como segredo de Estado.
Como podia o funcionário Fragoso dizer que o estudo do funcionário Gouveia e Melo tinha a classificação de segredo de Estado se o autor só a tinha classificado de “reservado” (disse ele) de acordo com o SEGMIL1 (não foi)?
Só se o funcionário Fragoso atribuiu essa classificação, o que não tinha competência legal para fazer. Mas se não atribuiu, não havia documento classificado como segredo de Estado, não havia violação de tal segredo, o funcionário Fragoso mentiu na participação criminal e sabia que estava a mentir ao fazer a participação criminal.
Fragoso afirmou, pelo seu advogado de defesa, que não atribuiu a classificação de segredo de Estado.
Como podia o chefe de gabinete do funcionário Fragoso não saber que era falsa a acusação de violação do segredo de Estado? Se o estudo era dele e não o tinha classificado assim, como podia não saber que não tinha sido classificado o seu estudo como segredo de Estado? E sabendo tudo isto, como permitiu que o seu chefe assinasse uma participação criminal com a acusação de violação de segredo de Estado? Não é pelo menos moralmente cúmplice?
Cabe aos tribunais decidir sobre a questão criminal; dispenso-me de repetir a minha posição aqui e agora.
Mas a vertente moral, quiçá a mais importante, está ao alcance de todos os cidadãos.
Bem sei que muitos evitam ter de assumir a posição que vai contra os seus pré-conceitos e os seus amigos (ou é favorável a quem não gostam), refugiando-se no “desconhecimento do processo”. Como se a falta de conhecimento detalhado de outros processos os inibisse de outras vezes se pronunciarem… Mas, mais importante, poucos trataram de consultar o processo. Claro que se o lerem pode tornar-se impossível fugir à posição que querem evitar ter de tomar.
A questão é mais grave quando entre os que ficaram em silêncio perante esta situação estão os que mais proclamam a superioridade ética e moral dos militares, e que passam tanto tempo a pretender dar lições de moral a outros. Não vou aqui e agora dar exemplos, nem sequer de oficiais-generais.
Quem falha a “regra de ouro” da moral revela ter baixos padrões morais, por mais que “encha a boca” de ética e moral. É mais grave do que a hipocrisia.
Mas, claro, é o caráter e os padrões morais dos arguidos que estão realmente em causa:

- o silêncio do senhor Fragoso,

- o silêncio do funcionário Gouveia e Melo sobre a classificação e violação do "segredo de Estado", deixando o seu chefe sozinho arcar com a acusação pelo Ministério Público,

- os arguidos a passarem as culpas aos subordinados,

- os arguidos a fugirem ao que afirmaram por escrito,

- as acusações que os arguidos sabiam ser falsas,

- a intolerância dos arguidos perante as opiniões adversas,

- e a perseguição pessoal que me moveram

revelam condutas incompatíveis com altos funcionários do Estado em democracia.
Estes mesmos funcionários já estiveram envolvidos na exoneração (sem fundamento) de um almirante e na acusação (falsa) através dos media de que ele e outro estavam envolvidos numa "conspiração de almirantes" (inexistente e delirante).
As condutas dos arguidos são reprováveis em qualquer cidadão; mas são muito mais naqueles em quem os cidadãos confiam para os dirigir e defender.

E lançam a dúvida: como podem os cidadãos saber que oficiais é que não são como os arguidos? E os que não são como os arguidos, porque não se demarcam destes?
Tolera o atual CEMA um funcionário destes sob as suas ordens? Que mensagem está a passar para todos os demais militares? Que exemplo está a dar?
Que imagem dá e permite que se esteja a dar da Armada?
Isso é um problema do CEMA e dos órgãos de soberania.

É triste ter de agradecer por se revelarem coisas destas. Que não são raríssimas, note-se. Este caso pode ser especial, mas é sobretudo por ter ficado um rasto de provas. Valiosas.

Pode ser que assim os órgãos de soberania aprendam e comecem a pensar mais e melhor quando promovem oficiais-generais e escolhem chefes militares.