Uma vez
concluído o processo, importa destacar os factos principais, analisá-los e
tirar as conclusões devidas; é disso que se ocupa este texto.
O processo
concluiu-se com a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de manter a decisão
do Tribunal de Instrução Criminal de não pronunciar Fragoso e Gouveia e Melo
por qualquer crime. Seguiu-se a decisões contraditórias do Ministério Público e
do Tribunal da Relação de Lisboa; mas a que conta é a última.
E esta foi
extraordinária, por duas razões: os arguidos afirmaram, de viva voz, ou por
meio do advogado que os defendeu, que não tinham classificado nenhum papel de
“segredo de Estado”, nem disseram quem o fez; porém, na sua participação criminal, Fragoso afirmou que eu violei o segredo de Estado (e por
isso o Ministério Público iniciou um inquérito judicial, com o nº2307/15.3TDLSB);
sublinho: Fragoso não pediu uma investigação, nem sugeriu tal necessidade –
afirmou, como mostrei no meu post anterior (http://proa-ao-mar.blogspot.com/2018/01/agradecimento-luis-macieira-fragoso-6.html). Nunca recuou. Se não
classificou, nem disse quem classificou, como sabia que estava classificado? Ou
sabia, por o ter feito; ou fez uma afirmação falsa e sabia-o – crime (diferente) em
ambos os casos.Os arguidos não deram explicações neste domínio, e o seu advogado, no debate instrutório, sugeriu que o problema foi a assessoria jurídica do CEMA: “de forma naturalmente errada, errada para ser simpático”, “isto é uma asneira jurídica clamorosa” e “uma infelicidade da participação original”.
Surge logo
esta dúvida fundamental: como é que um alto funcionário do Estado, com 60 anos
e uma carreira de 40 (parece que esteve dois anos a vender carros, apesar de
estar no ativo…), acusa uma pessoa de violar o segredo de Estado, sem ter
provas nem sequer indícios?
Como
alguém disse… “mas onde é que os vão buscar? Como é que os escolhem?”
Mesmo que,
com uma dose de tolerância a roçar a credulidade, se admitisse que Fragoso não
tinha consciência do que estava a assinar, a sua assessoria jurídica sabia
exatamente que era falsa a afirmação.
Um
funcionário sério e competente não assina um
documento que acusa alguém sem ter a certeza do que está a afirmar – nem um funcionário que submete ao chefe um papel para assinar (embora a falha do
subordinado não desculpe a falha do chefe). Um funcionário sério e competente assume
a responsabilidade pelo que assinou, mesmo que tenha errado. É inerente ao
papel de chefe, e ainda mais de comandante militar, e de topo.
Fragoso não só não
o fez, como se abrigou no estatuto de arguido para não prestar declarações, e
usou o seu advogado, para apontar as culpas a um/a (ou mais?) subordinado/a
seu/sua. Como voltar a confiar em tal subordinado/a? E em Fragoso?
A segunda razão é que o coletivo
do Tribunal da Relação de Lisboa que encerrou o processo não optou só por dar o
benefício da dúvida a Fragoso; passou a ideia de que só pronunciaria Fragoso se
este declarasse em tribunal que sabia estar a mentir e que queria fazer mal;
com este nível de exigência de prova, obviamente poucos (talvez só loucos)
chegariam alguma vez a julgamento e ainda menos seriam condenados – porque a
prova documental era objetiva e suficiente. Mas é pior, porque tanto este
coletivo, como a juíza de Instrução, como alguns magistrados do Ministério
Público insistiram em que eu poderia ter tido acesso ao papel que Gouveia e
Melo escreveu, e que bastava essa possibilidade para tornar verosímil a
denúncia de Fragoso (tudo isto, sublinhe-se, por, apenas, citar a frase do
“nevoeiro legislativo”). Curiosamente, uma ideia repetida por vários oficiais
da Armada próximos dos arguidos, e que certamente lhes dava muito jeito.
É como se,
dada uma coincidência, tivesse de ser eu a provar que não tive acesso ao dito
papel, em vez de caber a quem acusa provar o que afirma.
Mas eu até
provei, e fi-lo logo na participação criminal, que foi seletivamente ignorada.E nenhum dos arguidos apresentou qualquer prova, nem sequer indício, de que eu podia ter tido acesso ao dito papel. Mesmo assim, demonstrei reiteradamente que não tive, em declarações e nas respostas e contestações escritas.
Pasme-se… não
interessaram os factos; só interessou a hipótese sem provas nem indícios, ainda
que provada falsa. Está na natureza da defesa fazer o que puder para safar os arguidos;
mas que os magistrados insistam perante hipóteses que no processo se demonstrou
serem falsas, já é muito preocupante. Mas foi assim, e as peças processuais
revelam-no com clareza. Não foi um momento de que a administração da justiça em
Portugal se deva orgulhar.
Continuo,
ainda hoje, a só conhecer as duas páginas do papel de Gouveia e Melo que este
mandou para o processo. Mas posso hoje adiantar o seguinte: mesmo que tivesse
tido acesso a esse papel, nunca o usaria como referência naquele contexto,
porque a criatura não tem qualquer credibilidade na matéria; apesar da sua
imensa vaidade e arrogância, não passa de um ignorante bem falante, e citá-lo
podia impressionar os patetas, mas não servia para provar nada. Já o
apontamento em que me baseei, foi feito por alguém que estudou seriamente o
problema – por isso, o papel de Gouveia e Melo, posterior, o reproduz pelo
menos na 1ª e última páginas. O incómodo dos funcionários com o meu
conhecimento do apontamento que citei deveu-se à revelação de que afinal havia
dúvidas na Marinha, e que, quando diziam que estavam a cumprir exemplarmente a
lei, podiam ser acusados de má-fé; tinham dúvidas, mas não pediam aos órgãos
competentes para as esclarecer, e atuavam como entendiam (parece que não é só
na PJM...). Coloquei-os numa posição vulnerável, até internamente, pelo menos
perante aqueles que estudaram minimamente a matéria. Percebe-se que, numa lógica perversa, teriam motivos
para me calar.
O facto de
os tribunais não terem declarado que Fragoso e Gouveia e Melo cometeram crimes,
não apaga os factos nem a sua conduta deixa de ser censurável, pelo menos noutros planos.
Deixar as
suas condutas passar sem reprovação passa um péssimo exemplo, que pode levar
demasiados militares (os que obedecem cegamente; e os que seguem as pisadas dos
que chegam longe na carreira) a concluir que aquelas condutas são aceitáveis.
Mais: que aquelas condutas são necessárias para se chegar longe na carreira de
oficial.
E as
condutas de Fragoso e Gouveia e Melo são censuráveis, porque:
- Gouveia
e Melo podia ter evitado toda a situação, designadamente, podia ter evitado que
o seu chefe e a Armada ficassem envolvidos nesta situação e não o fez;
conhecendo-o, como conheço, há quase 40 anos, e atendendo a outros processos recentes que Fragoso perdeu nos tribunais, estou convencido que foi Gouveia
e Melo a conceber este esquema e que o propôs (impôs?...) a Fragoso;
- Fragoso
podia ter-se assegurado dos factos e de que não estava, pelo menos, a fazer
acusações sem fundamento; mas não o fez;
- Fragoso
podia ter assumido a responsabilidade, mas preferiu deixar o seu advogado
sugerir que o problema foi a assessoria jurídica;
- Fragoso
e Gouveia e Melo podiam ter-me pedido desculpa pelas acusações infundadas e
pedido desculpa à Armada pelo enxovalho que a estão a fazer passar; mas nunca o
fizeram, nem direta nem indiretamente;
- Fragoso
e Gouveia e Melo são oficiais-generais, o primeiro comandou a Armada, o segundo
ambicionava comandar, e é hoje o principal comandante operacional da Armada,
pelo que as suas condutas são observadas pela generalidade dos militares e são,
para muitos, exemplos.
Mas são
exemplos que, parece-me evidente, contradizem o discurso das virtudes e do serviço público.
Não é
demais repetir que Fragoso foi um alto funcionário do Estado, empossado e
condecorado pelo Presidente da República (quando já sabia dos factos em causa
no processo), e assinou a participação criminal de 2015
contra mim. Nunca sugeriu sequer que assim não foi, ou que foi pressionado.
É ainda de
notar o silêncio de muitos – sobretudo dos que falam e falam sobre ética.
E soube de alguns que só se incomodaram por ter aplicado a Fragoso o título de “funcionário”, que acharam deselegante; não me acusaram de ser falso – é só porque “não fica
bem”...Estranhas prioridades… designar Fragoso por "funcionário", se não é falso, importa exatamente a quem e exatamente porquê?
Ou para reconhecer um mal, há que reconhecer outro, como aqueles que reprovam um violador, mas sempre vão
dizendo que a vítima usava minissaia?
Dirijo-me
agora ao meu amigo António Mendes Calado, atual CEMA.
Caro
Mendes Calado,
Sei como
prezas a amizade e os amigos. Por isso, compreendo que tenhas, enquanto
Vice-CEMA, assinado um papel, a pedido de (representantes de) uns amigos, para
os ajudares a safarem-se em tribunal:
“DECLARAÇÃO
A pedido
dos representantes do Almirante […] Fragoso e do Vice-almirante […] Gouveia e
Melo, para efeitos de junção aos autos do Proc. N.º 488/16.8T9LSB, […], o
Estado-Maior da Armada analisou o Apontamento datado de 10/10/2012, composto
por seis folhas não numeradas, sob o assunto descrito como “Reflexão sobre as
relações de Comando e Controlo entre a Autoridade Marítima Nacional (AMN) e as
unidades navais com missões e tarefas no âmbito da actuação do Sistema de
Autoridade Marítima”, cuja cópia extraída da participação criminal constante
dos autos se junta em anexo, para a sua correcta identificação.”
Desde
logo, fiquei sem perceber porque disseste que o dito apontamento tem 6 folhas –
logo, 12 páginas. O documento que consta da participação criminal tem 12
páginas e na minha participação criminal só refiro 12 páginas e não folhas,
pois os anexos são parte integrante do texto. Percebes a dúvida, claro.
Além
disso, todo o texto segue a argumentação da Armada na matéria, que tem décadas.
Podia ser incómodo
(para eles; não para a descoberta da verdade) que fosse chamado a depor
(vinculado, como estaria, a dizer a verdade, correndo com isso o risco de
acabar com a carreira…) o autor do dito apontamento.
Talvez nem
soubesses que a minha participação criminal já tinha previsto aquilo que está
escrito no papel que assinaste (claro que os apontamentos não são documentos
formais e não ficam registados no serviço; e apontamentos não dão orientações –
são só reflexões ou análises que não vinculam ninguém…). Assim, a tua declaração
só podia servir outro fim: tentar impedir o autor do apontamento de depor.
Mas o meu
problema é outro. Não vejo qual a base legal para um alto funcionário do Estado
enviar declarações para um processo judicial, sem que os órgãos judiciais
competentes as tenham pedido, sem serem feitas perante os órgãos judiciais
competentes, sem serem requeridas pelos administrados ou arguidos (foi
um pedido pessoal) e sem usar o papel timbrado do órgão do Estado.
Sei que
sabes que eu sei que o Vice-CEMA é o chefe do EMA. E também sei que sabes que
eu sei que só o CEMA vincula a Armada. Preciso desenvolver mais?
Depois do
que fez a defesa de Fragoso, fico com a dúvida (legítima) se foste tu quem
concebeu o esquema, quem elaborou o texto, ou se te foi dado a assinar; e, um
dia, apertado, culparias e responsabilizarias a assessoria jurídica, alegando
que foi uma asneira jurídica clamorosa, mas sem afirmar nada. É que há um
precedente…
Aparentemente
são graves as vulnerabilidades da assessoria jurídica no topo da Armada. Presumo
que o teu antecessor e tu próprio, então Vice-CEMA, trataram de afastar as
óbvias vulnerabilidades. Dizem-me que não, e há quem sugira que sabem demais
para serem afastadas; só pode ser maledicência; falar amiúde em servir o
interesse público e os portugueses não se compadece com manter tais
vulnerabilidades.
Aproveito
a oportunidade para te pedir os teus bons ofícios para libertares a informação,
que existe e não tem base legal para ser afastada do espaço público, sobre
orçamentos e despesas da DGAM e da PM, a base legal e os documentos
administrativos relativos à decisão de aquisição e de instalação do Sistema Costa Segura, as
Atas das reuniões do Centro Nacional Coordenador Marítimo, entre outra
informação, que há largos meses foi requerida oficialmente ao MDN, e de que não
tenho resposta. Bem sei que a informação não está em teu poder; mas tu e eu sabemos que se mostrares a certas e determinadas pessoas que devem disponibilizar
a informação, de imediato elas o farão – a unidade de comando não é um dos
eternos argumentos para o CEMA mandar na Autoridade Marítima? Não estão sempre
a passar a mensagem de que a AMN dá ordens?
Não é o
amigo que te pede um favor. É o cidadão a pedir que cumpras e mandes cumprir a
lei, quanto à transparência e à colaboração da Administração Pública com os
cidadãos, pois, como sabes, a informação visa tratamento académico e
científico. Continuo a aguardar.
Agora como
amigo, deixo-te uma sugestão. Bem sabemos que, como militares, fomos formados
na ideia de que quem se nos opõe é inimigo ou traidor; e sabemos o que se faz a
inimigos ou traidores. Era bom que contribuísses para tornar os oficiais da
Armada mais tolerantes face a posições divergentes das suas, ou das posições
formais ou culturais da Armada. A Armada só pode melhorar e servir melhor
Portugal se considerar com abertura posições diferentes e até divergentes das
suas.
Desejo-te
as maiores felicidades e o dobro do que me desejares a mim.
Concluo este
post com duas ideias:
- não
vale tudo, mesmo que se diga que é para o bem da Marinha ou é pelo
interesse nacional (são os órgãos de soberania quem define os interesses
nacionais e o interesse público – e não os funcionários, que apenas executam
políticas); não vale tudo em termos morais, e os abusos podem levar qualquer um
a tribunal;
- os
militares servem o Estado, não se servem do Estado.
E encerro
aqui este assunto.