quarta-feira, 29 de junho de 2011

Privatizações, SIM !

Proudhon disse que a propriedade é roubo. Marx inspirou governos a abolirem a propriedade privada, em favor da propriedade comum, através do Estado. Gramsci, destacado marxista, disse em 1919: “[…] somos adoradores del Estado, queremos al Estado ab aeterno […]”.
Poucos na esquerda aceitam que haja falhas do Estado; confrontados com elas, “contorcem-se” para as justificar sem limitar o Estado. Têm um preconceito ideológico a favor do Estado, que está no seu “código genético”; por isso, não admira a oposição das esquerdas às privatizações (aqui entendidas como a venda a privados de empresas sob controlo público).
Mas há partes da esquerda que já interiorizaram que, com o colapso da URSS, não faliu apenas a “ditadura do proletariado” – faliu também a colectivização da economia. Mitterrand percebeu-o em primeira mão: nacionalizou empresas em 1981 e teve de aceitar a privatização a partir de 1983. A esquerda portuguesa do “mon ami Mitterrand” não se convenceu e “arrastou os pés” até 1988; mudou a linguagem, mas ainda não se conformou. Com uma “inspiração de cocktail” (agarra uma ideia em França, outra nos nórdicos, e por aí fora), a esquerda moderada continua a venerar o Estado, e não sabe lidar com as falhas do Estado. A esquerda moderada já não fala na “apropriação colectiva dos meios de produção” – mas fala no “controlo público” de empresas “estratégicas” (termo que sugere erudição e tenta dar um ar de inevitabilidade, mas que é tão ambíguo que já serviu para impedir a aquisição duma empresa de iogurtes por um estrangeiro, em França). Este controlo dos sectores “estratégicos” tem natureza política e não económica; embora adorem Stiglitz e Krugman, poucos na esquerda percebem que estes economistas vêem no Estado um meio de acção de uma sociedade para melhorar a eficiência económica: o Estado pode e deve intervir para corrigir falhas do mercado, mas perante falhas do Estado pode não haver vantagem em o Estado intervir ou chamar a si uma função.
A confusão, em Portugal, revela-se quando se diz que as empresas públicas, ou os serviços por elas prestados, são bens públicos. Os patrimónios das empresas públicas são do Estado e serão bens do domínio público, mas não são bens públicos. Estes satisfazem os critérios de não-rivalidade (o consumo por uma pessoa não reduz o consumo por outra) e da não-exclusão (não pode cobrar-se a cada pessoa o seu consumo desse bem); os exemplos típicos são a segurança e a justiça; na economia, mostra-se que uma sociedade tende a ganhar com a provisão destes bens pelo Estado, usando a sua capacidade de se financiar coercivamente para os providenciar. Ora as empresas, por natureza, financiam-se pelas receitas obtidas no mercado, ou não são de facto empresas. Por isso, não são veículos adequados para providenciar bens públicos, nem são bens públicos.
As doutrinas nacionalistas (de esquerda e direita) também “veneram” o Estado, como meio de mobilização de recursos contra o estrangeiro. Não aprofundo aqui estas doutrinas, pois colocam a autarcia acima do bem-estar da população e isso tende a conduzir a regimes autoritários.
Mas a ideologia que defende o Estado e com o maior número de apoiantes é a “dos interesses”: todos os (de esquerda, de direita, do centro, de cima, de baixo, sem lado, e por aí fora) que se acham no direito de, ou simplesmente esperam conseguir, “comer à mesa do orçamento” – isto é, obter algum tipo de direito especial ou recursos do Estado. Que ninguém se atreva a duvidar da bondade e apenas-boas-intenções desses, que se apresentam como não-alinhados. Que os recursos de que beneficiam sejam obtidos pelos impostos não os atormenta: querem o “pote”.
Um bom exemplo é a privatização da RTP: se demorar, será mais pelo interesse dos operadores (privados) de TV generalistas em não ter mais concorrência; só que ao Estado cabe garantir e aumentar a concorrência, e não manter as situações que convêm a agentes privados; se não há publicidade para mais operadores, então a inviabilidade económica afastará os compradores do novo canal, os actuais não vão ter mais concorrentes e não têm problema – mas a sua reacção revela que esperam que alguém compre a RTP, que aumente a concorrência, e que baixem os seus lucros.
Importa notar que a teoria sobre as privatizações cristalizou três grandes objectivos:
Primeiro, a obtenção de receitas da venda do capital de empresas públicas, para a amortização de dívida pública, e a redução de despesas públicas e de impostos. A privatização de empresas deficitárias obviamente reduz a “sangria” de recursos públicos para suportar os prejuízos. Este é o objectivo imediato das privatizações.
Segundo, o aumento da concorrência nos mercados, ou pelos mercados, visando o aumento da eficiência económica e, daí, o crescimento económico, um objectivo de curto prazo.
Terceiro, a abertura do capital à poupança de pequenos investidores, animando os mercados de capitais nacionais e a participação de mais cidadãos nestes mercados.
A utilidade das privatizações resulta da alteração da estrutura de incentivos e dos modelos de gestão das empresas. Ao contrário do que muitos dizem, há um vasto corpo de investigação académica e do Banco Mundial que o demonstra. E em todos os países sucede o mesmo.
As empresas são tipicamente organizações com fins restritos e bem delimitados; p.ex, produzir e vender electricidade. As empresas públicas, além dos fins estatutários, servem ainda políticas sociais e eleitorais dos governantes (o Estado é o accionista e é representado pelo Governo; o raciocínio é facilmente adaptável às câmaras municipais). Tais políticas, sobretudo as eleitorais, raramente declaradas (porque revelam lógicas de interesses sectoriais, inadmissíveis no sector público), só podem ser executadas por pessoal da confiança política dos governantes (“boys”): têm de manter a adequada reserva; executam políticas de emprego, acima do que as empresas precisariam, para resolver crises regionais e locais, ou para garantir a boa vontade de certos grupos; e muitas vezes esses cargos são uma recompensa por apoios ou serviços prestados. Este excesso de emprego implica baixa produtividade e até prejuízos, os quais são suportados pelos impostos. Mas dificilmente um gestor público é penalizado ou despedido por má gestão duma empresa pública ou pelos seus prejuízos; ele não está lá por isso; e os empregados em geral também se sentem como empregados do Estado, e com direito a emprego para toda a vida. Portanto, as remunerações não são más, e os prejuízos das empresas públicas tornam-se crónicos.
Nas empresas com “golden shares” a gestão é profissional, mas, como sabemos, um governo pode querer usá-las para realizar fins inconfessáveis, que podem prejudicar a empresa.
É difícil encontrar quem não saiba de todos estes mecanismos. Há quem diga que o problema é a “falta de ética” das pessoas – algo que fica bem ser dito sobre os outros, mas que se constata ser generalizado, confirmando tratar-se de um problema estrutural e do perfil de incentivos. É provável que haja pessoas que são menos sensíveis ao perfil de incentivos, mas são a minoria e dificilmente serão escolhidos pelos governos, cujos critérios divergem do que declaram.
Em suma, as empresas públicas não providenciam bens públicos, e a sua dependência directa dos governos introduz-lhes um perfil de incentivos, que fomenta a ineficiência e desvios à boa gestão, como a selecção de dirigentes por recompensa, em vez de capacidade de gestão.
Sobre a tese de que empresas públicas lucrativas não devem ser privatizadas, porque o Estado deixa de receber os lucros e recebe apenas os impostos (tese do capitalismo de Estado), cabe notar que, a prazo, as ineficiências e os incentivos perversos vão levar ao desprezo pelo cliente (e a fraca inovação comparativa) e, havendo concorrência, a prejuízos.
Exprimi assim sucintamente a minha argumentação, a favor da privatização de empresas como a TAP, a ANA, os CTT, a REN, a CP, as Águas, os ENVC e as empresas do grupo EMPORDEF; e, dum modo geral, por que razão considero inadequado existir um sector empresarial do Estado.
(E agora ... para a Praia Maria Luísa, para duas semanas de férias!)

1 comentário:

  1. Excelente !!!
    Gostaria de acrescentar o que se passou comigo nos anos de brasa de 1976, 77 e 78 quando fui presidente do 4º grupo empresarial em Portugal então pertencente ao Estado.
    Cedo aprendi a defender o Estado com unhas e dentes por se tratar do erário público. Era isso que eu fazia mas tinha sempre contra, o Governo dito socialista, que pretendia sair das empresas mas por mãos alheias (as minhas). Disse sempre que não e até argumentei que algumas dessas empresas tinham um papel fundamental na vida dos portugueses e foi por isso, para demonstrar a bondade do que afirmava - e fazia - que por despacho meu, em maio de 1977 os preços no consumidor em Portugal pela primeira vez baixaram em relação a Abril do mesmo ano. E quando me perguntaram - o Governo de então - porque o tinha feito respondi "para provar o que tenho dito".
    Verifiquei que o Governo não gostou porque estava a pensar que a minha resposta seria "porque estamos à beira de eleições legislativas e eu quero que o partido socialista as ganhe". Debalde !
    Mais tarde percebi que o dito Governo queria mesmo entregar as empresas ao desbarato. E foi aí que bati com a porta.
    Entretanto, um ilustre advogado da nossa praça, representante de um dos interessados em ficar com uma parte do bolo, mas com quem eu conversava muito, disse-me "você tem complexos de esquerda" e, de imediato, retorqui "então Salazar era um perigoso esquerdista" ; voltou à carga dizendo "pois eu farei tudo o que for preciso para f.... o Estado" e aí não havia resposta civilizada a dar.
    Passado pouco tempo este advogado foi nomeado Ministro das Finanças e eu decidi nunca mais trabalhar para o Estado.
    Conclusão : o Estado não tem vocação - nem gente capaz - para gerir empresas.
    E eu adoptei o princípio de quanto menor for o Estado mais possibilidades há de evitar a corrupção.
    Mas também é verdade que, a partir daí, tive várias empresas (minhas)e nunca quis ter negócios com o Estado. Devo ter sido "ingénuo" segundo muitos dizem ...

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