Para garantir redundância, deixo aqui também o texto publicado no Notícias Viriato em 28-Out-2021.
Não Aprenderam Nada: Gouveia e Melo, outro Menino-de-Oiro
Em seis meses, os media em uníssono fizeram do vice-almirante Gouveia e Melo (GM) um menino-de-oiro. As massas, incluindo muitos diferenciados, imbuídos daquele tão português sebastianismo, e abdicando de qualquer prudência, seguiram o flautista. Os media fizeram o mesmo com Sócrates, mas poucos aprenderam que, quando está em causa o poder, entusiasmo sem cautela e espírito crítico é mau. Claro que a fé dispensa os factos, e há muitos, nos media e na comunidade em geral, a guiar-se por fé. Ainda assim, é bom, nem que seja só para ficar registado, notar factos muito relevantes.
Em primeiro lugar, GM não vacinou os portugueses, nem sequer é responsável pela elevada taxa de vacinação dos portugueses. GM foi coordenador – isto é, nem sequer foi chefe – da task force, que reuniu técnicos de vários ministérios. GM não aprovou as vacinas, não decidiu a compra das vacinas, não comprou as vacinas, não elaborou o plano de vacinação e não aplicou as vacinas. GM teve um cargo administrativo e coordenou um grupo de pessoas que executou o plano de vacinas. GM teve um encargo logístico, de distribuição das vacinas onde elas foram aplicadas. O planeamento coube ao Kaizen Institute.
Segundo, apesar de ser coordenador da task force, foram atribuídos recursos a GM, incluindo militares, na sua dependência hierárquica e de que não se sabe ao certo o que fizeram (para lá de seguirem o que sobre ele se dizia nas redes sociais e nos media tradicionais). Só custa ser bom gestor e bom líder quando isso impõe custos. GM teve os recursos que quis, inclusive para gastar em merchandising (quem o pagou?) para distribuir e se exibir.
Terceiro, apesar de ser só um coordenador administrativo, GM teve uma presença constante nos media, tantas vezes mais destacada do que os responsáveis políticos. Aliás, é de realçar que os media estavam sempre à espera de GM onde este ia. Não custa perceber como, dadas as ligações de GM aos media, desde que foi porta-voz da Armada. Não surpreende, pois, que a foto final divulgada seja só de militares, todos vinculados a uma reserva, isto é, à “lei da rolha”. Desta forma, só se sabe o que GM quer que se saiba.
Quarto, a promoção mediática de GM assentou especialmente em entrevistas. Poucos notaram o óbvio: se GM não gosta de falar dele, não fale e não se exiba – se dá entrevistas, pode dizer que não gosta, mas não é sincero. Também disse que não se considera um “salvador da pátria”, mas a sua afirmação de que “Este país eram anos para endireitar” mostra que não foi sincero. Estas dissonâncias foram ignoradas pelos media nas entrevistas e perfis. Mais importante e revelador foi a ausência de qualquer relato sobre GM pelos que alguns jornalistas chamaram “detratores”; e darem eco acriticamente quando GM chama “malandros” a alguém. Jornalistas sérios têm aí pistas para olhar o objeto sob várias perspetivas; ninguém é perfeito nem unidimensional, como os media apresentam GM. Aliás, a escolha do termo “detratores” já revela um enviesamento dos jornalistas; de facto, ele fez mal e conscientemente a pessoas, que não são detratores; são vítimas de GM, como explico agora.
Quinto, em 2015, GM inventou uma violação de segredo de Estado, e acusou dela um cidadão, sem qualquer fundamento como revelou a conclusão de “inexistência de crime” no inquérito do Ministério Público. Tinha certezas na acusação, mas chamado a tribunal a justificar-se, invocou que eram só suspeitas. E assim ficou patente a honradez, a seriedade e a coragem de GM.
Sexto, o dito cidadão foi ainda acusado, por duas vezes por GM, de difamação da Armada e dos seus oficiais. GM em tribunal e num inquérito declarou que “o CEMA se viu obrigado, por questões institucionais e éticas” a processar quem prejudicasse a imagem da Armada (os inquéritos foram arquivados); e GM, seu chefe de gabinete, secundou-o como principal testemunha. Ficou assim patente a ausência de limites morais de GM, para agradar a quem o pode beneficiar; e ainda a sua intolerância face a vozes dissonantes, algo que orienta os militares mais modernos, enquanto ele estiver no ativo.
Sétimo, em 2016, um vice-almirante titular de órgão superior da Armada foi exonerado, por uma alegada “conspiração de almirantes”, afirmada por um jornalista cujas ligações a GM eram faladas; o jornalista afirmou em tribunal que as suas fontes eram ao mais alto nível da Armada. O referido vice-almirante, depois de recorrer aos tribunais, viu anulada a sua exoneração. O jornal foi repreendido duas vezes pela ERC, pelo mau jornalismo, sem factos e absurdo – não são os almirantes que exoneram ou nomeiam o comandante da Armada. Mas há almirantes que se movem nos bastidores e que já conseguiram impedir outros de alcançar esse cargo. Estes episódios revelaram uma técnica, que Trump popularizou: divulga-se uma ideia desfavorável, e mesmo que seja absurda ou falsa, fica instalada a dúvida: “ele é almirante; deve saber”. De facto, GM foi um dos dois únicos que beneficiaram da exoneração daquele vice-almirante. De novo, ficaram patentes a honradez e os métodos ínvios de GM.
Oitavo, ainda em 2016, o gabinete do comandante da Armada, chefiado por GM, emitiu uma nota à imprensa na qual insinuava que havia um vice-almirante corrupto. O oficial visado processou GM e o comandante da Armada por calúnia e difamação; foram acusados pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Tão seguros estavam da sua inocência, que os acusados evitaram o julgamento a todo o custo, e fizeram um acordo em que se retrataram. GM e os seus apoiantes, em especial os jornalistas, invocam que GM não foi condenado; o que não dizem é que não foi ilibado, e esta dúvida fica para sempre, pois só um tribunal pode ilibar da acusação. De novo, GM faz ou sugere acusações falsas, a que tenta escapar em tribunal, mas que, como Trump, visam lançar dúvidas e manchar alguém. Correu-lhe mal, e as dúvidas e manchas ficam para sempre sobre ele, por mais que a claque o tente branquear nos media. Vêm à ideia as denúncias mediáticas que fez de alegadas irregularidades na vacinação, mas cujo arquivamento não tem impacto mediático nem afetam GM.
Nono, no bizarro episódio relativo à exoneração do almirante Mendes Calado como comandante da Armada, foi ensurdecedor o silêncio de GM. Face ao tratamento indigno e inaceitável que o Governo deu ao almirante Calado, o que se espera de qualquer militar com elevados padrões morais é uma expressão pública de solidariedade; e do indigitado para lhe suceder, é de esperar que rejeite o cargo por indignidade no processo. Mas com câmaras e microfones sempre abertos para GM, e até promoção nos espaços mediáticos cor-de-rosa (diz que não gosta de falar de si próprio…), GM optou pelo silêncio neste ponto. E o que alguns escolhem comentar é a fuga de informação, como se algo neste processo devesse ser escondido dos portugueses. Já se sabe que GM sabia o que se estava a passar. Ficou claro que a sua ambição de poder, se sobrepõe às virtudes e aos deveres militares de lealdade e de respeito.
Talvez alguém tenha concebido este esquema para que se revelasse a fibra dos envolvidos: o almirante Calado mostrou nobreza e sangue-frio, e assim mostrou estar acima da desconsideração de que foi alvo. GM mostrou o que tantos sabemos há décadas, mas que uma campanha mediática tenta branquear: para GM, os seus fins justificam os meios.
Também não excluo que António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa, por certo conhecedores do passado e do caráter de GM, mas visando afastar a sombra que GM estava a fazer à popularidade deles, tenham achado que o mal menor era darem-lhe um cargo de poder, militar, no qual se espera discrição. Mas se é isso que visam, vão falhar: “quem faz um cesto faz um cento” e GM já mostrou que usa o poder e os media para se autopromover, e atropelar seja quem for que se atravesse no seu caminho; e tem uma claque que faz campanha por ele. Claro que GM pode enganar muitos por muito tempo, mas não pode enganar todos todo o tempo, por mais silenciosa que esteja a sensatez.
Sobre o referido processo, numa abordagem de política pública, cabe notar que é inaceitável exonerar um alto funcionário sem fundamento sólido e claro, ainda por cima reconduzido há 6 meses; a iniciativa do Governo desconsiderou as instituições e a pessoa visada. Mesmo que haja um acordo para o almirante Calado não cumprir o mandato, só a ele cabe a iniciativa de pedir a demissão. Esteve bem Marcelo, em quebrar o costume de só ter em funções comandantes dos exércitos com o acordo de Presidente e Governo, e recusar a proposta do Governo. E mais, porque isto não foi a decisão mais popular, no imediato.
Pessoas com elevados padrões morais não ficam indiferentes aos factos acima, só uma seleção dos mais recentes. No mínimo, devem contrastá-los com o que acharam da vacinação. Mas pessoas prudentes estranharão o unanimismo, a parcialidade e a falta de escrutínio dos media, ou o foco só numa pessoa que nem teve uma tarefa difícil – e sobre a qual, se não fosse uma reportagem da Porto Canal, nada de concreto se sabia; e ainda assim, pouco se sabe.
Pessoas prudentes e com elevados padrões morais espantam-se com a campanha mediática, que ao fim de seis meses (seis meses!) já aponta GM para Presidente da República, sem notar o absurdo de levar a um cargo político e com fraco conteúdo executivo, alguém que os próprios media definem como um executivo sem ambição política. Outros acham que ter sido bom a distribuir vacinas prova que seria o melhor dos possíveis comandantes da Armada, anunciando até que GM ia obrigar os políticos a tratar melhor os militares… Tal como aplaudem quem “rouba, mas faz”, as massas aplaudem GM.
Claro que há quem veja em GM um útil instrumento para dividir aquela direita que gosta muito da competência, da ordem e do “respeitinho”, que se está a aglutinar em torno de mais outro comentador. Também há militares que, no fundo, não se conformam com a supremacia civil e anseiam por um novo Eanes. Há, ainda, jornalistas e editores que acham que os media podem criar “meninos-de-oiro”, como fizeram com Sócrates… E há as massas, ainda mais manipuláveis quando impera um ambiente de medo. Nestes grupos, parece que ninguém aprendeu com o caso de Sócrates.
Importa ainda notar que além do disparatado e inaceitável processo de exoneração do almirante Calado e do silêncio de GM, está longe de ser óbvio que GM é a melhor escolha para comandar a Armada. Todos os vice-almirantes no ativo têm vantagem sobre GM nos pontos fundamentais: a nenhum se podem apontar falhas morais, ou nas virtudes militares; têm uma experiência profissional militar-naval diversificada e muito mais rica, essencial para altos funcionários do Estado; conhecem e dominam a legislação relevante; privilegiam a conduta de rigor e discrição, em vez do exibicionismo ou do uso dos media para fins pessoais; não foram acusados em processos criminais, e ainda menos está em dúvida se seriam ilibados em tais processos.
É oportuno repetir aqui a defesa que tenho feito da alteração da lei, para impor a audição parlamentar dos militares indigitados para comandos militares de topo. Não impedirá erros nem enviesamentos, mas aumenta a transparência e obriga os indigitados a um escrutínio que é hoje inexistente, que permite o pior tipo de politização das Forças Armadas, aquele que está em curso. Escolher GM para comandar a Armada tem ainda um efeito perverso e grave: mostra a futuros candidatos que “o caminho das pedras” inclui denegrir os concorrentes, e construir uma claque nos media, que vai fazendo campanha pela figura e tornando o nome conhecido de atores políticos e comentadores, que escolhem pelas aparências. Com GM a comandar a Armada, os órgãos de soberania eleitos mostram que a competência profissional-militar é secundária face à promoção mediática. É uma forma eficaz de destruir as FA, e é chocante ver tantos militares encantados com ela.