Apesar de haver canais de
notícias de 24 horas e noticiários de uma hora nas TV, há pouco importante para contar; os media servem poucas notícias e muito entretenimento, é
isto que tem mais procura – a maioria das pessoas não procura nos media fatos nem
oportunidades de reflexão, mas “a baixa da gasolina” e a confirmação das suas
posições; coisas que não exigem grande esforço a pensar e que não suscitam
dilemas. Para refletir, e com fraca procura, há (alguns) programas de debate e
artigos de opinião nos jornais. Portanto, os media “trabalham” os fatos para
servir a procura. Nada disto é novidade; é apenas um enquadramento a ter presente,
e que explica este longo intervalo das minhas reflexões – sendo certo que as
tenho partilhado noutros meios também.
Mas o Acórdão do Tribunal
Constitucional que declarou a inconstitucionalidade do corte dos subsídios de
férias e de Natal no setor público é um desses raros fatos importantes, de
grande alcance, e que merece reflexão. Ofereço agora a minha, depois de ter
lido e ouvido políticos, juristas, comentadores e jornalistas expor as suas
interpretações.
Em primeiro lugar, a
decisão do TC é para ser compreendida e respeitada. É essencial para a saúde do
Estado de Direito que se respeite a CRP e as decisões dos órgãos de soberania.
Eu discordo da decisão, e da fundamentação, mas defendo que deve ser aplicada no
espírito e na letra. Tem de haver um “fim da linha” para resolver disputas, e é
assim que se deve entender a decisão; prolongar a disputa contraria a
tolerância democrática.
Segundo, sem fazer uma
discussão pormenorizada do Acórdão, concluí da sua leitura que tem pouco
conteúdo jurídico e muito conteúdo político e até ideológico. É até
incontornável ver nalgumas passagens, reforçadas em declarações de voto,
posições de débil base jurídica sobre a política-económica e financeira, que é
competência de outros órgãos de soberania.
Terceiro, a equidade não
pode ser o valor mais elevado perante uma crise existencial – um país que
perdeu uma guerra, como bem diz João Salgueiro – e já o defendi (http://proa-ao-mar.blogspot.pt/2011/10/equidade-nao-e-preciso-investimento-e.html):
é muitíssimo subjetivo avaliar o sacrifício de cada um e fazer comparações; o
TC pode decidir institucionalmente sobre a subjetividade, dando razão a uns
contra outros, mas não resolve o problema de fundo.
O que é essencial, agora,
em tempos extraordinários, é cumprir aquilo que o Governo legítimo de Portugal
se comprometeu em 2011 a realizar com os financiadores externos, para assegurar
que os setores público e privado voltam a poder pedir empréstimos no exterior
para financiar as suas atividades. Cabe sempre recordar que sem esses
empréstimos, o Estado teria interrompido no todo ou em parte os seus pagamentos
a fornecedores, servidores do Estado e pensionistas; isso é de um grau de
sofrimento social muito superior a uma recessão de 3% do PIB. É fácil para
alguns criticar, porque não houve corte de pagamentos – e criticariam se
tivesse ocorrido, porque é fácil "estar no contra".
Quarto, o Acórdão do TC
centra-se no conceito de igualdade proporcional, e faz juízos de valor sobre o
“limite dos sacrifícios”, que considera ter sido excedido com este corte,
apesar de o país estar a viver uma situação crítica. O TC aceita que a
igualdade só faz sentido com um sentido da proporcionalidade (portanto, não há
igualdade…), violada com estes cortes. Mas depois diz que pode vigorar no
ano de 2012, pelas dificuldades que causaria a aplicação imediata da decisão.
Claro que a questão que surge logo é: mas se a medida é tolerável em 2012, e se
a situação é crítica durante a vigência do Programa de Ajustamento
Económico-Financeiro (2011-2014), porque não mantê-la até ao fim do PAEF no
1ºsemestre de 2014?
Ou, se é inconstitucional,
e se há limites para a desigualdade, com base na proporcionalidade, e se decide
que foram violados, como se tolera sequer que a medida tenha efeitos em 2012? Se há valores superiores à desigualdade, porque não prevalecem?
Ou, ainda, como se pode
invocar a existência de limites para a desigualdade, com base na
proporcionalidade, e depois não se especificam esses limites, dizendo apenas
que 14,3% já é demais? Seria o corte de apenas um subsídio uma desigualdade
proporcional? E o corte de um subsídio e 50% do outro? Onde está a fronteira?
Parece-me claro que este ponto não tem
sustentação lógico-dedutiva, nem jurídica, e que o raciocínio é
ideológico e até político (no sentido de refletir uma preocupação sobre a
condução das decisões e ações da governação). De fato, não sei de alguém que se
reveja na fundamentação e na decisão por inteiro.
Em alternativa, ou em
complemento, os juízes do TC poderão ter pensado como servidores do Estado, a
quem foram cortados os ditos subsídios, e não como personalidades independentes.
É uma hipótese que se pode considerar no plano académico, mas que não me leva a
defender o desrespeito pelo Acórdão.
Quinto, sou servidor do
Estado e defendo que os cortes dos subsídios são constitucionais (como já o
foi, e aceite como tal pelo TC em 2011, o corte das remunerações mensais dos
servidores do Estado). Para mim, abstraindo dos interesses pessoais, é óbvio: a
bancarrota do Estado é um problema do Estado em primeiro lugar, porque a
“máquina” do Estado também usufruiu do abuso de endividamento externo.
No essencial, defendo que
crises existenciais exigem medidas extremas (rápidas e eficazes), e costumo dar
o exemplo da quimioterapia: causa sofrimento e danos gravíssimos ao corpo, mas
é a única garantia que o doente tem de não morrer da doença. Curas milagrosas
não há!
Sendo o primeiro dever do
Estado garantir a sua sobrevivência e autonomia, e estando o PAEF bem
delimitado nas metas e prazos de realização, entendo que essa é a fundamentação
jurídica mais sólida para avaliar a constitucionalidade dos cortes. É simples e
conciso; não usa juízos qualitativos, subjetivos, ideológicos ou contamináveis
pelos interesses próprios de quem julga.
E oferecia uma delimitação
clara ao Governo: os subsídios teriam de regressar no 2º semestre de 2014; podia
haver uma reforma das remunerações dos servidores do Estado e pensionistas, mas
teria de se partir da base da remuneração total anual (14 x remuneração mensal).
Uma nota curta sobre a
questão mais mediática, mas também importante, do momento: a licenciatura de
Miguel Relvas. É consensual que não houve ilegalidade e que a controvérsia não
se inseriu no exercício de funções políticas, nem se acusa o ministro Relvas de
usar o título para fins ilícitos. É consensual que foi uma forma ligeira e
privilegiada de obter um título académico, e muitos ligam isso às exigências de
rigor e esforço que o Governo defende.
Este ponto revela a, digamos, insinceridade dos comentadores. As exigências de rigor valem mais do que quem as defende; fazer valer as exigências de quem as defende é uma forma hábil de fugir ao rigor e ao esforço. Que se conjuga bem com a “chico-esperteza” tão comum (que se revela em privado, mas se nega em público), que consiste em desejar também conseguir obter aquele “tesourinho”. Por exemplo, as pressões sobre professores para que os filhos passem sem saberem, ou os milhares de portugueses que tentam“esquemas” para entrar ou meter os filhos no Estado (pelo emprego para toda a vida). É isso que é importante neste caso: muitos pensam espiar e disfarçar a sua inveja e fracassos apedrejando Relvas.